Dois lados

Quão levianos são os julgamentos feitos em torno da personalidade de um
homem! De mim, discreto e cioso, dizem viciado; austero e sensato,
chamam-me imaginativo, quase louco. Todos superficiais demais para
entenderem que não sou uma coisa nem outra.
Minha mulher pela terceira vez me chama. São duas e meia da manhã e
Jogo xadrez pela Internet. Nessa noite, eu, que sou bom, sinto-me invencível.
Lanço um desafio, que é prontamente aceito. Os olhos fitos no
tabuleiro, vejo meu novo adversário jogar. NO quinto lance, penso que ele é tão bom
quanto eu; no décimo primeiro, admito-lhe certa superioridade; no décimo
quarto, penso que seja
invencível; no décimo sétimo, a partida está em suas mãos e eu cogito
seriamente abandonar o jogo ao qual fielmente me dediquei todos os
dias, desde a primavera longínqua dos meus quinze anos. "Deve ser um
grande mestre disfarsado", penso eu, recolhendo os restos mortais da
minha empáfia entre dois peões capturados.
De repente, um hiato: as jogadas ritmadas, quase automáticas, param
de chegar. Fixo-me nos segundos desmaiando sobre a tela; nada dele.
Começo a ficar preocupado quando suas jogadas prosseguem.
Entretanto, embora persistam as linhas gerais que lhe caracterizam o
estilo, a genialidade perece junto com o
tempo desperdiçado. Lance a lance, desfaz meu companheiro o brilhante
empenho das investidas pregressas. Parece mesmo que a mediocridade
encharca suas veias, toldando-lhe o raciocínio e nivelando-o aos
capivaras mais empedernidos.

A empatia envolve-me, inexorável. Que terá perturbado tão
fundamente meu adversário, guindado automaticamente à condição de ente
dileto ante a desventura que provavelmente lhe acomete?
Relembro minha esposa, surgida a pouco no umbral da porta do
escritório. Estava linda, como lhe é habitual. Vestes transparentes,
nitidamente a espera de que eu concluísse minhas partidas para envolvê-la
com meu amor. Terá meu companheiro a dádiva de desfrutar de tal raridade
na intimidade doméstica? Temo que não. Talvez estivesse ele a jogar para
aliviar-se da espera pela mulher que tardava a voltar à casa. Talvez
estivesse ela em bares, ladeada por companhias menos dignas; talvez a
pausa repentina tenha se dado porque aquela mesma mulher, dissoluta e
infiel, ligara para casa, perfeitamente embriagada, dando a saber ao
brilhante e incompreendido marido três realidades que o aniquilaram
completamente,
a saber:
1 - Ela comunicava-lhe que saía de casa.
2 - Fazia-o por não poder mais negacear seu amor por Josefina, uma
moça fantástica que conhecera nas aulas de equitação.
3 - Josefina, a propósito, estava grávida. Fizera inseminação
artificial afim de que gerassem frutos seu arrebatado e pungente amor.

Tão perdido estou em tais elucubrações, que me espanto ao ver que
meu querido amigo deixou o tempo cair. Os pontos perdidos no seu rating
dóem em mim. Lágrimas grossas enchem-me os olhos, ao ponto em que
uma necessidade extrema de aproximação humana me envolve.
Nunca me dirijo a um jogador. São adversários, nada mais.
Entretanto, hoje é diferente. Acesso o campo de mensagens e
indago-lhe se está tudo bem. Sua resposta é uma desconexão
instantânea. Apavorado, estremeço: estará ele a um passo do suicídio?

Através do retrato

As vozes ficaram mais distantes depois que ele fechou a porta.
Não queria ouvir e, ainda assim, distinguia o contexto por
detrásda madeira, não preparada para esses revezes.
Na escuridão do quarto fechado, Telmo ouvia e tremia, esperando que
seu nome não fosse sitado, esperando não ser o culpado,esperando não
precisar serjulgado também.
Dentro de poucos instantes, porém, o instrumento saía da caixa.
Duas, três notas preliminares, e todas as outras que estavam
encarceradas fugiram de seu peito, desaguando em cascatas ritimadas
pelas cordas suaves e obedientes. A música deslizou assim para o quarto,
alheando-o da discussão lá fora, do mundo que ruía sem jamais ter
conhecido a solidez. As lágrimas escorreram em determinado ponto, mas ele
não se importou. Abraçando-o como a solicitar consolo, derramou sobre o
instrumento dócil toda sua confusão, toda sua doçura, toda sua urgência
de carinho não satisfeito, de ambiente adequado ao florescimento que
sobrevivia apenas nas suas canções.
Ao fim, exausto, pegou do caderno de pauta e escreveu freneticamente.
As escalas por fim o redimiram e o levaram até o céu, suspenso em um
universo de notas perfeitas, harmonias diáfanas e sonhos de abranger
todo o mundo com a suavidade dos tons.
Lá fora, porém, o Universo continuava inconsciente do que se passava no
seu quarto fechado. Os soluços da mulher sessaram abruptamente e sobre
eles pairou um silÊncio congelado . Em seguida, passos vibraram
sobre os degraus, os pés aproximando-se do seu santuário. O caderno de
pauta aberto, as mãos hábeis surpreendidas no meio deum acorde
perfeito, quando a luz de fora foi finalmente revelada.
- Não, não precisa parar, filho. - Disse o pai à soleira, suado e
trêmulo, segurando uma máquina digital e um tripé .
Organizando os objetos que trazia com ele, ajustou
o timer e aproximou-se do garoto que, tentando fugir à realidade, seguia
executando a canção que compusera.

O flash vibrou e os capturou aos dois. A Máquina foi retirada por
seu dono, enquanto os pés que o trouxeram rumavam para baixo.
No quarto, Telmo continuou suspenso em seu mundo, certo de que, como
no passado, ele o protegeria do medo e da desilusão. Antes desse,
enfrentara vários outros estágios, inclusive o da rebeldia, da
intervensão inútil, do ódio indiscriminado. Agora, porém, após o
décimo quinto aniversário, sentia-se mais apaziguado, mais preso do
desejo de não saber que de qualquer outro impulso.
Adormeceu, pois, sobre seu refúgio, sendo acordado só mais tarde pelos
raios que entravam-lhe pela janela aberta. O frio despertou-o como
poucas coisas poderiam fazê-lo. A casa, porém, não estava quieta.
Apenas depois percebeu que fora um grito, e não o Sol que o acordara.
Rastejando para fora do quarto, encontrou-os todos na sala: a
empregada, o vizinho e o corpo mutilado da mãe.
O terror foi tanto que lhe obstruiu as lágrimas. Parado no cômodo
agitado, tal foi seu silêncio que tardaram para adivinhar sua presença.
Quando tal aconteceu, um desconhecido segurava a máquina que
estivera sobre o pedestal. Na tela pequena, estava a foto de pai e
filho, capturados naquele instante de intimidade fabricada.
Peritos examinaram data e hora da fotografia. Era estranhamente
parecida com o horário aproximado do assassinato. Afinal, que significava
isso? Seria seu companheiro inocente ou culpado?
De pé no ambiente agora repleto, espantava-se de ninguém ter lhe
dirigido qualquer questão. No silêncio de sua mente treinada pela música
para perceber nuances, telmo lembrou-se de ter visto a culpa nos olhos
do pai, a mesma culpa que o fitava através do retrato, olhos que fingiam
compreender sua música, sem jamais terem tentado dela se aproximar.
"Talvez ela também o tivesse salvado" - congecturou o garoto, antes
de sentir-se arrastado para a escuridão.

Fim de semana

- Eu disse que não era pra você vir - Disse ela, através do
interfone, a voz irritada e enlatada apoiando-se na proteção contra
chuva do aparelho.
- Abre a porta, Aurélia. Vamos conversar. - Pediu ele, entre surpreso
e agastado.
- Eu não tenho nada para conversar com você. - Proferiu,
demonstrando sua resolução ao depositar o aparelho no suporte, junto à
parede da cozinha.
Mateus continuou de pé, sob o Sol alegre de domingo, olhando
fixamente a casa silenciosa, como se dela pudesse vir alguma idéia ou
explicação.
Em um retrospecto automático, os lances essenciais dos últimos anos
invadiram sua mente, com a intensidade e a cor dos respectivos
momentos.
Depois de seis meses de paixão, falaram em casamento, e a idéia foi
bem acolhida por absolutamente todos os interessados. O matrimônio
realizou-se em um clube concorrido, e não faltou nem alegria, nem
auspícios promissores. De fato, o casal parecia navegar em águas
tranqüilas, mesmo quando, três meses após o matrimônio, anunciou-se a
chegada de um bebê.
Outra vez, tudo foi perfeito, ao menos, até o nascimento. Aurélia
mostrou-se uma mãe atenciosa. Atenciosa até demais. Tão atenciosa, que Mateus
desapareceu. Ao menos, no que lhe dizia respeito.
Passava dias inteiros sem lhe dirigir a palavra, praticamente, tão
absorta estava nos cuidados com o bebê.
Ele dizia a si mesmo para ser compreensivo, afinal, era uma
mudança e tanto na vida dos dois. Esperava, sensatamente, que ela
dividisse melhor sua atenção na medida em que o bebê crescesse. Bem, não
foi o que aconteceu. Não nos próximos seis anos. Na verdade, Aurélia
mostrara-se nitidamente desagradada, sempre que ele buscava qualquer
proximidade com ela e com a menina. Claro, talvez ele devesse estar
esperando até aquela hora, e então provavelmente estivesse dentro da
casa, não fora, plantado diante de umas paredes indiferentes. Contudo,
aparecera Mônica.
A jovem viera estagiar na firma em que ele trabalhava. E o que ela
tinha de mais? Nada; apenas deu-lhe atenção, riu das suas piadas de vez
em quando, reparava se ele estava bem ou não. Para ele era óbvio que
ela estava apaixonada, e uma verdadeira tragédia o fato de ser
correspondida.
Procurou coragem e a encontrou. Premiu outra vez a campainha.
Silêncio.
Nunca falaram nos sentimentos de ambos, mas ele não tinha nenhum motivo realmente
bom para rejeitar o convite de ir ao aniversário de dois anos da filha
da moça, e, realmente, não pareceu-lhe haver nada de mais em ajudá-la a
limpar a sujeira, depois que todos foram embora.
No outro final de semana, os três foram para a praia e, pela
primeira vez, ele teve a oportunidade de brincar com uma garotinha, sem
restrições.
Assim foi por quatro meses, até que ele
percebeu que Mônica e sua menina eram mais familiares a ele que sua
mulher e a própria filha.
Não que não amasse a criança. Amava. Mas a atitude da mãe sempre o
mantivera distante, chegando mesmo a obstar qualquer contato mais
pessoal.
O divórcio tornou-se imperioso. Ele talvez quisesse fazer o caminho
de volta, mas, na vida de Aurélia, simplesmente não havia lugar para
um marido.
A separação correu esplendidamente, até o ponto em que mencionaram
as visitas. Para Aurélia, a questão era simples: nada de visitas. Ao
renunciar a ela, ele renunciava à filha. Pacote completo. Acontece que,
além da vontade férrea, ela não tinha nenhum outro motivo para
justificar sua imposição, de modo que as visitas semanais eram
um fato que ela detestava, mas com o qual era obrigada a conviver.
Assim, todos os finais de semana, a garotinha estava esperando-o na
porta, vestidinho passado e com um ar solene. A relação com ela nunca
fora melhor. Pela primeira vez desde seu nascimento, eles tinham a
oportunidade de realmente interagir, o que era motivo de muito
contentamento para ambos. Os dias de domingo eram aguardados com
ansiedade pelos dois. E era para mais um daqueles dias que ele estava
ali, o Sol magnífico convidando-os para a praia, para mil e uma
alegrias. Mas, por um motivo misterioso, Aurélia decidira que ele não
podia levar a menina.
Tocou outra vez. Nada. Uma segunda vez. Demorou mais em retirar o

dedo.
- O que é que você quer? - Perguntou ela, irritada, a voz alterada
agora ultrapassando a proteção contra chuva.
- Aurélia, não faz assim. Abre a porta, vamos conversar...
- Não temos nada para conversar com você.
- Meu Deus do céu, Aurélia, por que fazer is... - O aparelho sendo
lançado contra o suporte interrompeu-lhe o argumento.
Primiu o dedo, outra vez. Ela atendeu com um palavrão.
- VocÊ está sendo ridícula, Aurélia. Eu tenho a chave, mas não
queria entrar contra sua vontade.
- Então não entre! - Concluiu, interrompendo a comunicação uma vez
mais.
Após pequena hesitação, ele voltou ao carro e retirou a chave do
porta-luvas. Com os passos retornando à frente da casa, ouviu gritos e
choros confusos, partidos de dentro. Para ele, foi o incentivo que
faltava.
Girou a chave e adentrou pela garagem, alcançando o quintal , a
varanda e a porta da sala, que já estava aberta.

A cena não precisava de explicações. Marcela era empurrada em
direção ao seu quarto, enquanto mãe e filha gritavam, alteradas.
- Entra e fica quieta. - Ordenava Aurélia, o rosto vermelho pela
cólera, fios esparsos do cabelo ruivo escapando do elástico.
- Eu não vou. Eu quero ir com meu pai. - Contrapunha a menina,
enquanto as lágrimas rolavam, desoladas, pelo rostinho miúdo.
Sem ainda ter divisado o ex-marido, Aurélia resolveu a questão,
agarrando a garotinha por sob as axilas e carregando-a para o
quarto, enquanto ela gritava e chorava, as palavras sendo amassadas pela
torrente de lágrimas:
- Hoje é dia do meu pai. Eu quero ficar com meu pai. - Repetia ela,
em uma ladainha impotente.
Mesmo a porta trancada, não pôde abafar-lhe os gritos por completo.
Quando a mãe deu às costas ao quarto da filha e voltou pelo corredor,
encontrou Mateus, poucos metros diante dela.
- Eu disse que não queria que você entrasse. - Disse ela, num
sussurro tenso.
- Por que você está fazendo isso, Aurélia? - Perguntou, tristeza
trocando de lugar com a determinação.
- Eu não tenho que te dar satisfação. Não sou mais sua mulher.
- Está certo. Só que Marcela ainda é minha filha. Sempre vai ser. -
Arriscou, a cabeça erguida contra ela, confuso, mas também aviltado.
- Escute, Mateus, por que você não esquece a menina? Pelo amor de
Deus, mesmo sua namoradinha tem uma filha. Deixe Marcela para mim. Ela é
tudo que me resta.
- Você fala como se a menina fosse uma cristaleira, uma coleção de
discos... Ela é uma pessoa, e precisa de pai e mãe.
- Ela não precisa de um pai como você. Ela precisa só de mim.-
Concluiu Aurélia, os lábios apertados, as lágrimas grossas abrindo caminho por seus olhos
castanhos.
- Como assim, um pai como eu? Eu não sou horrível.
- Não. - Concedeu ela, irônica, tentando, debilmente, enxugar o
rosto com o dorso da mão. - Você nos abandonou. Você foi embora, foi
indo, foi indo e nos abandonou.
- E você fez qualquer coisa para me manter por perto? - Perquiriu
ele, a voz gradativamente alteando-se.
- Você que se afastava da gente, você que nos ignorava, e eu que
tinha que correr atrás? - Desafiava.
- Bem, só estava em questão o seu casamento.
- Estava em questão a felicidade da minha filha, e ela parecia muito
bem sem você.
- Ela não me pareceu bem, agora. - Argumentou, irritado.
- Aquilo foi um capricho. Passa logo. Ela está com a mania de ser
intransigente.
- É um capricho querer ficar perto do pai? - Indagou, as forças
divididas entre continuar apelando para a razão da mulher e não
sacudi-la pelos ombros.
- Ela não precisa de pai. Eu nunca tive um, e fui muito feliz assim,
obrigada.
Mateus creu ver um vulto refletido no vidro da janela,
mas não deu atenção.
- Você pretende que isto se torne um hábito?
- Eu nunca disse que queria essas visitas.
Um lampejo de fúria genuína lambeu suas entranhas. Fechou os olhos, tentando conter a irritação. Em milésimos de
segundos, revisou todas as opções a seu dispor. Podia desacordar a
mulher e levar a filha dali, o que lhe traria problemas, caso Aurélia
continuasse com aquela idéia absurda; podia ameaçá-la de alguma coisa,
impor-se como homem, o que certamente angariaria os mesmos ônus da
primeira postura; chantagem emocional não costumava funcionar com quem
somente
enxergava as próprias penas.
Recapitular temporariamente pareceu-lhe a única alternativa válida,
embora fosse a menos desejável. Perguntou-se o que Marcela acharia de
tudo aquilo. Ficaria contra o pai? Pensaria que fora traída? Estaria
ela, na inocência do seu coração, esperando que ele a deixasse sair do
quarto e partilhar com ele um maravilhoso dia de Sol?
Pensou em procurá-la na escola, para conversar. Aurélia não
precisaria saber. Era o pai da menina, não era? Odiou-se por planejar
ver a própria filha escondido. Aquela atitude toda era tanto humilhante,
quanto inaceitável.
Sem, entretanto, encontrar melhor possibilidade para o momento,
dirigiu a mulher meia dúzia de expressões pertinentes e saiu porta a
fora, fechando o portão daquele lugar que há poucos meses julgara que seria seu
lar para sempre.
Ao aproximar-se do carro, notou um rostinho conhecido contra o vidro.
Abriu a porta, tendo quaisquer expressões retardadas por um
imperativo gesto que ordenava silêncio.
Os seus olhos encararam aquele rosto que era tão parecido e
diferente do seu. Uma mistura que, em um passado que não ia tão longe,
julgou ser aprova máxima da união e do amor.
- Vamos, papai! - Pediu a menina, com ar gravíssimo.

Conversa que não devia

Os dois sentados em um bar. Dez e meia da noite, mesas
separadas bastante para prover privacidade.
- Eu sempre soube tudo de você. - Disse Rita, alegre, depois de
expressar uma percepção sobre o marido que este acolheu.
- Nem tudo. - Contrapôs ele, o riso de antes ainda caindo pelos
cantos da boca suja de camarão.
- Ah, não? Então, diga uma coisa que eu não saiba. - Provocou, o dedo
espetado na direção dele, a expressão trocista, porém desafiadora.
- Rita, Rita... Temos já quinze anos de casado, e você acha que tem
algo que não saiba de mim?
- Mas foi você quem disse que eu não sabia tudo! Ora, vamos lá, o
que é que eu não sei?
- Você sabe tudo que há para saber.
Mais tarde, Rita não soube o que a alertou: se a pausa, se o tom.
- Mesmo? - Exigiu, olhos nos olhos, as mãos segurando a mesa.
Ele observou-a por um instante, aparentemente registrando a tensão
crescente pela primeira vez.
- Meu Deus, o que é isso? Pra que essa cara? Rita, pelo amor de
Deus, pára de criar confusão.
- Criar confusão? Depois de quinze anos de casado, existe algo que
eu não sei de você, e você ainda me diz isso, com essa cara?
- Sei lá se tem, meu Deus! Eu falei por falar. - Defendeu-se,
surpreso.
- Falou por falar? Falou por falar? Essas coisas a gente não fala
por falar. Ou é verdade, ou não é. - Teorizou, os olhos marejando-se de
pranto, os nós dos dedos tornando-se brancos pela intensidade com que
segurava a mesa.
- Nós nos conhecemos desde os doze anos. Estudamos juntos desde
então. Casamos e você sabe tudo sobre a minha vida. O que pode haver de
obscuro nisso?
- E eu é que vou saber? Eu vim pra cá propensa a criar caso? Vim?
Essa era para ser uma noite legal! Você que veio com essa história.
- Escute Rita, não há nada que você não saiba, mas, supondo que
haja...
- Há, eu sinto! - Exclamou ela, batendo o punho contra a mesa,
conseguindo que copos e garrafas tilintassem perigosamente.
- Supondo que haja... Não é concebível que tenhamos um pouco de vida
própria? Por exemplo, você não me diz o que fará com aquelas economias
que...
- Deixe minhas economias fora disso! - Exigiu em tom alto, obrigando
algumas cabeças a virar em sua direção.
- Meu Deus, calma! Não quero suas economias! Era só uma brincadeira de um segundo! - Tentou, ao mesmo tempo em
que procurava pedir, com gestos, a conta ao garsom que passava.
- Há coisas sobre as quais é proibido brincar, mesmo que seja por um
segundo. - Concluiu, secando os olhos e tentando recompor-se, enquanto,
intimamente, já tomara uma decisão.

***

O homem era daqueles que você vê na rua e não olha uma segunda vez.
Entretanto, é certo que, se chegasse a fazê-lo, surpreender-se-ia ao
comprovar que ele saberia mais coisas a seu respeito que você mesmo. Seu
apartamento era decorado com um estilo sóbrio, porém pessoal, tendo por
um de seus diferenciais a sala despida de quaisquer estofados,
repleta de almofadas vermelhas pelo chão.
Rita e o detetive Lúcio conversavam na cozinha, em um tom
completamente profissional. Ainda assim, ela desfrutava de certa
familiaridade, como se os olhos escondidos sob os óculos escuros lhe
inspirassem uma afinidade singular, como se a voz que se mantinha em um tom sempre
baixo, quase inaldível, despertasse em si confiança irrestrita.
- Então, o que quer que eu descubra a respeito de seu marido?
- Absolutamente tudo que eu não souber. - Respondeu Rita,
prontamente.
- Mas isso é bastante impreciso, a senhora há de convir.
- Impreciso? Não vejo porquê. Descubra o que puder, e vejamos quanto
eu sei.
- Devo convir que a senhora suspeita de traição? - Indagou ele,
olhando-a de uma forma que lhe soou distante demais.
- Pode ser. - Confirmou, cruzando e descruzando as pernas dentro da
calça preta e justa, o rosto voltado na direção da fruteira repleta de
frutas naturais.
- Quem sabe má conduta na vida financeira? - Sugeriu.
- É, pode ser, também.
O outro permitiu-se um suspiro contrafeito.
- Muito bem, já entendi. Entrego meu primeiro relatório na próxima
semana.
Disse isso e levantou-se, estendendo-lhe a mão. Ela também
ergueu-se, apressada, pondo em xeque a acertiva de sua empreitada. Muito
bem, supondo que não houvesse nada para ser descoberto? Ela se sentiria
uma neurótica ciumenta e perderia todas as suas economias. Como podia
ser assim, tão ridícula?
Pensou francamente em desistir de tudo, exigir seu dinheiro de
volta, alegando que tinha um distúrbio de personalidade ou uma irmã
gêmea - a desculpa não importava.
Todavia lembrou-se de que Clair, sua melhor amiga, descobriu que
estava sendo traída após consultar esse detetive e, veja bem, o esposo
dela era ninguém mais, ninguém menos que Marcelo, o estereótipo do
homem perfeito, o irresistível galã de novela definitivamente fora de
circulação, preso de amores por sua noiva eterna.
Claro que Rita sempre soubera de tudo, mas, quando Clair lhe
perguntara, preferira calar-se: jamais queria sobre si a
responsabilidade por um lar desfeito.
Então... Se ele pôde descobrir algo de errado no Marcelo, imagina no
Gustavo, seu marido?
Na primeira semana, nada inédito. Relaçõies familiares, o fato
de que ele estava procurando emprego há dois meses. O nome do banco em
que tinha conta, e até mesmo um estrato atualizado. Isso plantou na
cliente a certeza de que as relações dele eram incríveis; na segunda
semana, relatório medíocre. Seus melhores amigos de escola, junto com
seus respectivos endereços e ocupações. A cópia xerografada da sua
agenda junto com seus compromissos anotados, bem como a constatação da
hora, local e finalidade de cada um deles.
Rita estava encantada. Definitivamente, ele era melhor que Sherlock
Holmes.
Suas economias bastavam apenas para mais uma semana. O terceiro
informe, porém, foi melhor que todos os outros. Era um praticamente um
diário detalhado, apenas escrito em terceira pessoa. Possuía até
detalhes da vida conjugal dele, bem como uma série de ninharias que ela
jamais soubera, como, por exemplo, que ele praticara tiros, que era
alérgico a aves, que namorara e própria Clair, antes dela.
- Clair? - Saltou Rita, espantadíssima. - Mas como ele pôde? Ela
sempre foi minha melhor amiga?
- Bem, talvez seja o caso de perguntar, também, como ela pôde. -
Atalhou Lúcio, sorrindo.
- Como assim? Você vai defender ele, agora?
- Acho que você vem sendo realmente injusta com ele.
- O quê? - Exclamou Rita, ruborizando-se.
- É, de verdade! Veja bem, você, sem nenhuma prova concreta,
pagou-me para esquadrinhar a vida do homem...
- Pois é. - Concordou a mulher, empertigando-se, pondo-se de pé. - Paguei, e muito bem pago. Pensei que o pagamento incluísse
alguma privacidade.
- Sim, certo, mas eu realmente não acho justo que...
- Escute aqui, meu senhor, muito obrigada. Vou dizer para todas as
minhas amigas quão maravilhoso o senhor é. Agora, se não lhe devo mais
nada...
- Não, não se preocupe, está tudo acertado. - Garantiu,
acompanhando-a até a porta, fazendo um muchocho ao ser surpreendido com
o barulho causado pela força com que a mulher a fechou.
Em seguida, espreguiçou-se, observando seu reflexo através do
espelho do corredor da sala. Agilmente, retirou a peruca, revelando uns
cabelos pretos e bastos. A barba postiça escondia um rosto mais notável
que o que seu dono engendrara. A retirada dos calços nos sapatos
restaurou-lhe a altura a uma estatura inferior, portanto, mais
chamativa e um observador logo descobriria que a cor do paletó era
perfeita para dicimular um tecido adiposo extra.
Coçando o cabelo displicentemente, Gustavo pegou do envelope e
contou as notas. Em seguida, chamou:
- Clair, venha, querida. Preciso do telefone daquela transportadora.

23 Horas

24 Horas

23:45

Com o passar dos anos, Kátia aprendeu a reconhecer quando começava a
perder o controle. Invariavelmente sua voz descendia meia oitava e ela
deixava o estágio de amarfanhar uma ponta de pano qualquer para enrolar
e desenrolar uma mecha de cabelo no indicador. O ir e vir da mecha negra
erea o cronômetro do tempo que faltava até o descontrole final, algo que
poderia eclodir sob a forma de um acesso de fúria ou de lágrimas, o que,
de toda maneira, refletia a raiva exacerbada.
Bordejava aquele estado milítrofe há uns bons minutos, quando tudo
explodiu de uma vez só. Frases que jamais deveriam ser sequer
sussurradas, escaparam do seu peito. Soube que fora longe demais quando
os olhos de Eduardo se tornaram intensos, a indignação rutilando,
emprestando-lhe um brilho assustador ao influxo da luz pálida que vinha
do relógio digital.
O silêncio caiu entre eles, mas estava longe de ser misericordioso.
Pelo contrário, exibia todos os caracteres da calmaria que precede uma
temível tempestade, aquela que teria o poder de varrer tudo quanto
encontrasse a sua volta.
Ao cabo de alguns instantes ele falou, a voz baixa e controlada de
quem não deseja gritar.
- Eu quero o divórcio.
Kátia esperou. Nada mais. Parou de olhá-lo. os olhos castanhos
pousaram na geladeira. Ímãs de geladeira. Uma bruxa com uma vassoura.
Talvez tivessem comprado isso no primeiro ano de férias. Catálogo de
lanchonete, telefone de farmácia, propaganda do gás; uma lembrancinha
tosca que Júlia trouxera da escola, no ano anterior; uma ou duas fotos
de bebês lutavam para ter espaço entre artesanatos da Bahia, propagandas
de cerveja e uma infinidade de quinquilharias.
Assombrada, Kátia percebeu que havia uma história permeando cada um
daqueles objetos. Mais sério ainda: percebeu que cada uma daquelas
coisas fizera parte da sua história com Ed. Por que isso a
impressionava? Ao todo tinham sido quinze anos. Quinze anos
turbulentos, mas, indiscutivelmente , quinze anos.
- Você não pode estar falando sério. - Ela falou para a geladeira,
mas ainda assim, foi ele quem respondeu.
- O que temos de bom? Apenas fazemos mal um ao outro e depois...
Depois teve o que você disse... Isso sem contar com o Jair.
Colocou a mão sobre um bonequinho de gesso e começou a arrastá-lo
para baixo, para baixo, para baixo, empurrando, assim, todos os que
estavam antes dele. Um a um, os enfeites foram escorregando,
simultâneo às palavras de Kátia para a geladeira.
- Você não pode ter levado a sério isso. Foi uma viagem da empresa,
nós estávamos brigados. Talvez eu tenha bebido demais.
- Sem nenhuma dúvida eu já bebi demais - confessou, triste -, mas
nunca foi motivo para que eu tivesse outra mulher.
- Olha, Ed, desculpa, eu exagerei, eu posso...
- Já passou da meia-noite, Kátia. Dorme e depois a gente decide o
resto.


05:30

Kátia realmente tenta acordá-lo, mas ele parece estar disposto a fingir
um sono imperturbável eternamente. Pouco depois, completamente arrumada,
prepara o café da manhã. Só então acorda Júlia, que reluta em
sair da cama e precisa ser sacudida várias vezes.
Comem juntas em silêncio, enquanto a televisão, na cozinha, entre
ambas,
despeja as notícias da manhã.
Poucos minutos mais tarde, as duas caminham juntas, rumo à
parada de ônibus. Espera curta, chegada do transporte. Entram. Sentam-se
separadas. Descem bons minutos mais tarde. Despedem-se de forma
maquinal na
esquina da escola. Kátia pergunta-se como lhe contaria do divórcio. Por
algum motivo, sabe que a decisão do marido é irreversível. Censura-se
por Jair e muitas outras aventuras anteriores, ao tempo em que execra a
falta de compreensão do esposo. -
Chega à empresa e funde-se à pequena multidão de funcionários.
Assume seu posto e trabalha por toda a manhã, tentando vigorosamente
afastar um outro assunto da sua cabeça. Não adianta.
Na hora de almoço, renuncia a uma porcentagem dela para pegar um
ônibus e dar uma passadinha no laboratório. Retira o exame e abre-o,
expectante e assustada. Positivo. Suspira e enfia o papel na bolsa.
Entra no banheiro e chora.
Trabalha todo o resto da tarde. Pergunta-se se o filho é mesmo de Ed
e se ele também fará o mesmo questionamento.

19:15:
Está presa em um engarrafamento. O coletivo praticamente não se
mexe. Ignora se a mãe lembrou de buscar Júlia na escola.

21:00

Finalmente entra em casa. Ed ainda não voltou do serviço. Sua mãe a
espera na porta. Júlia está doente, precisa de remédio.
Kátia entra em casa e encontra a filha. Parece ainda menor que da
última vez que a observou bem. Os seus olhos são velhos, mas a aparência
denuncia menos que seus seis anos de vida. Um abraço no silêncio, o
exame se mexendo na bolsa, a menina enrolada em dois cobertores.
Sai outra vez, procurando uma farmácia. Fechada. Apenas poderá
dispôr de uma 24 horas. Uma drogaria aberta em tempo integral dista dois
ônibus dali.
Kátia abre a bolsa, pega a carteira, conta as notas, e finge não ver
o papel do exame sorrindo para ela.

21:45

Entra na farmácia. Apenas ela, um funcionário e outra compradora.
Kátia aproxima-se do balcão e pede o remédio ao vendedor indiferente,
simultâneo à entrada de dois potenciais consumidores no estabelecimento.
O remédio desliza da prateleira; dinheiro magro troca de mãos e um
tiro é dado para o alto.
Todos os olhos encontram uma arma, uma mão, um dos recém-chegados.
Nada demais, só outro assalto.
Kátia maquinalmente olha para fora, esperando um socorro miraculoso
e recebe como resposta apenas a luz distante de um poste.
Os rapazes se sentem insatisfeitos com o dinheiro disponível no
caixa. A frustração sobe-lhes em ondas espiraladas desde o fundo do
estômago. Retiram a bolsa de Kátia, não encontrando nada ali além do
dinheiro para o ônibus e cinco centavos referentes ao troco do remédio.
Voltam sua atenção para o medicamento na mão dela. O líquido desliza para o chão, caindo
em gotas grossas como lágrimas silenciosas, talvez as lágrimas que Kátia
desejara ter chorado aos pés da geladeira, quase 24 horas antes.
O funcionário não é descriminado. Chutes, agressão gratuita, um tiro
certeiro na cabeça. Aparentemente, sua carteira oferecia tanta
dificuldade quanto às magras posses da mulher.
Sob os olhares anônimos dos transeuntes ocasionais e apressados, a
farmácia foi pilhada, Kátia colocada em um canto, proibida de se mexer,
enquanto a mulher era empurrada para o banheiro, os passos trôpegos
como os da mãe de Júlia no encontro com Jair..
De relance, o papel do exame no chão.

23:00

Por algum motivo desconhecido, um carro da imprensa local aparece
nas imediações. Entrevistam os rapazes irritados, entrevistam Kátia.
Os policiais chegam para as negociações. Realmente, os consumidores em
potencial precisam ser apaziguados. Fazem exigências, ameaçam
explodir a farmácia.

23:40
Kátia pensa na febre da menina. Imagina se o jornalista enviará
um chamado urgente, para que alguém verifique a doença de Júlia. Por
algum motivo, duvida que a mãe possa se dedicar muito a isso, com
ela aparecendo na televisão. O exame olha para ela, agora pisoteado.
Tudo é rápido e sem remição, quase como sua explosão de fúria
na cozinha, noite passada. Decide pegar o exame: teme que algum curioso
o veja, por mais absurda que pareça a hipótese.
Um dos rapazes interpreta isso como reação ao assalto, fica ainda
mais nervoso e atira.
O exame, Júlia, Ed, Jair, as gotas grossas do remédio no chão: lágrimas
que ela não chorará jamais.

Nos braços do Cristo

Fiquei surpresa ao resgatar este conto, diretamente dos escombros do que sobreviveu ao ano de 2002. Podia ter sido pior.

Nos braços do Cristo

Sou secular. Vim de tão longe, que mal sei de onde saí. Da infância,
lembro-me de grandes pátios, uma vontade enorme de ir embora e muito,
muito trabalho. Lembro-me também da minha mãe, negra e bonita,
mexendo enormes taxos de doces no fogão a lenha. Depois, um padre me
ensinando a ler, fazendo o que ele dizia ser sua boa ação do ano.
Ao contrário dos que dividiam a senzala comigo, eu tinha pele,
cabelos e olhos claros, por causa daquilo que soube mais tarde chamar-se
infidelidade senhorial. Para ser mais exato e hirônico, chama-lo-hia
subjulgação ou, para ser mais cru ainda, estupro. Do ingenho enorme, a
melhor lembrança que guardo é da minha mãe. Foi meu primeiro e mais
verdadeiro amor, possivelmente porque era simples.
Anos mais tarde, fui vendido. A lembramça dos seus olhos secos,
acompanharam-me por todo esse tempo e, quando tornei-me vampiro,
foram esses mesmos olhos que me impediram de infrentar o Sol um milhar de
vezes, quando a eternidade parecia-me insuportável e fria de mais.
Alimentáva-me do sangue dos maus e tentava ser bom, não porque
fosse digno, mas porque assim corria menos riscos de desaparecer nas
mãos de algum inimigo. Além disso, havia um fato que já, já te conto.
Participei de muitos clãs durante os anos seguintes.
Estive nas campanhas da segunda guerra mundial, acompanhando todos
aqueles homens que lutavam sem sequer saber porquê. O problema dos
grandes sempre afoga os pequenos e isso eu compreendi desde cedo.
Meus conhecimentos do iluminismo, revolução francesa e guerras mundiais
embeveceriam quaisquer estudantes de história deste mundo. graças à
faculdade de transporte ultra rápida dos vampiros, eu pude presenciar a
alguns esses acontecimentos de perto, sem, contudo, ser de qualquer
utilidade. Predador um dia, predador para sempre, e deixe que
te diga que a eternidade é um tempo muito longo. Ao menos, costumava
ser. As coisas mudaram muito desde que conheci Talita.
Dizem que todo homem, por pior que seja, encontra-se, uma vez na
vida, frente a frente com a virtude.. Dizem mais: falam que essa virtude
apresenta-se-lhes em forma de mulher. Acredite: esta é uma história
verídica.
Ao longo dos anos, conheci muitas mulheres que deram-me o melhor ou
o pior de si, dependendo delas mesmas e das circunstancias. Entretanto,
nenhuma é tão especial e encantadora quanto a minha Talita.
Sua vida, seus quinze anos, estão muito aquém desse papo sério de
eternidade, senzalas, vampiros sugadores de sangue e cadáveres
dilasserados nos canais. Sua vida consiste em ajudar a mãe com o
jantar, ir à escola, telefonar às amigas, tentar recuperar uma nota
baixa, andar de patins aos finais de semana, e, claro, aproveitar os
encantos do seu primeiro namorado. É capaz de adivinhar quem é o
felizardo? Sou eu. Eu que, pela primeira vez, queria ser apenas um
adolescente espinhento que procurasse ganhar coragem para convidá-la a
dançar no baile da escola; eu que fico atordoado com a sua sensualidade,
que parece quadriplicar simplesmente com o fato de ela ignorá-la;
eu que me perco na cascata noturna que acaricia

seus ombros, uma cascata de fios perfeitos e muito macios, como um
halo de pureza a envolvê-la; eu que derreto-me ao som da sua voz alegre,
feminina e quase infantil; Eu que deixo meu espírito deslizar para
esferas alvas com a simplicidade delicada da sua voz; ela que, de tão
rosada, tão perfeita, meiga e singela, fez renascer o que havia de
melhor em mim.

Encontrei-a uma noite dessas. Seu ônibus havia atrazado e ela
estava tentando voltar a pé para casa. Eu, faminto, procurava alimento.
Vi-a. Pensei no seu sangue fluindo para mim, mas, ao aproximar-me, percebi
que seria incapaz de fazer-lhe mal. Contrariando meus instintos, decidi
protegê-la, ser um bom amigo, qualquer pessoa inofensiva que estivesse
sempre por perto para ajudá-la. Acompanhei-a até a casa e, em pouco
tempo, fiquei sabendo tudo a seu respeito. Encantou-me o mundo simples e
seguro que ela tinha, a sua bondade natural e a receptividade que tive
no seu coração. Poucos meses mais tarde, ela escreveu-me uma carta de
amor e começamos a namorar. Agora, finjo que sou um rapaz de vinte e
poucos anos, que faço universidade em outra cidade e apareço todas as
noites para namorá-la, no aconxego do seu lar.

Sei que essa situação não pode estender-se pela eternidade. Um dia,
quando ela estiver mais velha, pretendo contar-lhe tudo e, se ela não
me quiser mais, sairei do seu caminho tão rapidamente como entrei,
agradecido por tudo de bom, puro e sincero que partilhamos juntos.

Nesse momento, estou indo vê-la. Você, caro leitor, de certo ficará
encantado com ela, tanto quanto eu. Verá que anginha ela é...
Primo a campainha. Sua irmã vem abrir a porta.
- Olá! - Digo, oferecendo-lhe aquilo que tentava ser um sorriso.
- Oi, João. Tudo bom? A Talita não está.
- Como assim?
- Foi com umas amigas lá pelo Cristo Redentor.
- faz muito tempo isso?
- Que nada! Deve estar já voltando. Recebeu um telefonema, disse
que ía para lá e não se demorava. Quer entrar e esperar um pouco?
Mamãe fez creme de abacate.
- Não, Camila. Muito obrigado. Vou encontrá-la. Voltamos para casa
juntos em breve, tudo bem? Guarde creme para dois.
Dizendo isso, despedí-me e me afastei, usando meus poderes na
esquina para chegar mais rápido ao lugar indicado. Vampiros ten os
sentidos mais desenvolvidos, embora possam escolher quando usam essa
faculdade. Ao aproximar-me, abro ao máximo os meus canais senssitivos.
Não quero ver mal nenhum rondando a minha Talita. Tenho que protegê-la,
lembra? Meu coração está feliz, agora. Vejo-a. Está linda na sua calça
geans e na sua camiseta. Seus cabelos voam com o vento, como asas
delicadas de um pássaro gracioso. Ela está conversando com alguem. Não
conheço este moço. Será que está importunando-a? Vou dar uma lissão
nele! É capaz que eu me alimente novamente essa noite só para lhe ensinar
uma lissão. Mas, antes, melhor ser calteloso. Às vezes é apenas um
amiguinho da escola. Eles conversam.
- Talita?
- Eu tenho namorado, Do.
- E daí? Você já fez isso antes.
- Mas....
- Se você não quer, eu vou embora e não te atormento mais.
- Não, Do... Eu sempre gostei de você.
- E no entanto vive aos beijos com esse ilustre desconhecido.
- Não é um desconhecido!
- Claro que é!
- Do, não faz isso! Eu sempre fui louca por você.
- Foi, é?
- Sou.
- E o desconhecido?
- Foi só para te provocar.
- Então, conseguiu seu objetivo, doçurinha.
Agora ele a abraça. Não, eu não estou vendo isso! Não pode ser
isso! Ela aproxima-se mais. Turistas passam por eles.. No alto, o
Cristo redentor, imponente e bom, assiste a esta traição. Eu, também no
alto, não sei o que fazer. Eles se beijam.. Ela beija-o. Despenteia
seus cabelos e beija-o. Diz-lhe palavras de amor que nunca me disse e
beija-o. cobre seu rosto de beijos e abraça-o. De repente, afasta-se.
- Agora tenho que ir, Do.
- Mas por quê?
- O "Desconhecido" deve estar lá em casa, esperando-me.
- Vai terminar com ele?
- tenho que ir com calma. O coitadinho é tão apegado a mim que...
Isto é de mais! Tremo. Quero me queimar no sol. Quero nunca
existir. A minha Talita está fazendo isso? A minha pura, doce e meiga
talita? Após a surpresa, vem a raiva. Isto não pode ficar assim.
**

Eu era pouco mais que um neófito quando soube que a escravidão
acabou. Tinha pouco mais que um caixão de meu, mas faria o possível
para ter minha mãe junto de mim, para poder dar-lhe o mínimo de
conforto e o máximo de assistÊncia possível.
Por isso, dirigí-me ao ingenho disposto a levá-la comigo. NO
caminho, vislumbrei uma fila de miseráveis, todos pretos, anônimos,
êx-escravos que não tinham para onde ir. Atrás de todos eles, estava uma
velha muito maltratada pelo tempo e pelos árduos trabalhos que lhe
impuseram desde muito menina. Aproximei-me, penalizado. Tinha que
ajudá-la. Ao olhá-la de perto, tive um choque: era minha mãe. tornei-me
visível e oferecí-me para ajudá-la com a pequena trouxa que carregava.
Ela parou de andar, ficando ainda mais para trás na fila. Depois,
fitou-me demoradamente e seus olhos espelharam um reconhecimento que eu
jamais teria esperado.
- João, meu filho!
Dizendo isso, sentou-se no chão de terra batida, quente e árida.
- Eu sabia que você viria.
- Vim buscá-la, mãe. - Foi a primeira frase que me ocorreu.
- O Senhor já vem me buscar, João.
- Como assim?
- Que bom que nos encontramos! Você vai ser bom, não vai?
- Sim, mãe. E eu vim buscá-la! tem umas coisas que a senhora
precisa saber, mas..
- Só me prometa que vai ser bom.
- Eu vou ser, mãe.
Ato contínuo, sem saber bem por qual motivo, abracei-a e ela
expirou nos meus braços.

**

Ser bom é algo que está além das minhas possibilidades nesse
momento. Agora, sou todo frieza e maquinação. Observo a garota próxima
ao Cristo redentor. Passam muitos turistas, mas eu não os vejo. Ela se
despede e beija seu novo namorado. Vira-se de frente e eu torno-me
visível, aparecendo por trás dela.
Toco-lhe o ombro com suavidade.
- Tali?
Ela vira-se. Parece perturbada.
- João? Há quanto tempo está aqui?
- Acabei de chegar.. Por quê?
- Nada, não. Só perguntei.
Vamos pra casa?
- Sim, vamos. Hoje tem creme de abacate.
- Ah, sim? Você passou lá?
- Foi o que combinamos. Mas, antes, quero te mostrar uma coisa.
Como já te disse, talita ignorava por completo a minha natureza
sobrenatural. Entretanto, nãO PODERIA APENAS MATÁ-LA, NÃO É? aBRACEI-A
COM FIRmeza e delicadeza.
- "Você vai ser bom, não é? " - "HOje, não, mamãe. Hoje, não."
Com minha mente, fiz com que ficássemos invisíveis e começamos a subir.
- João, o que é isto?
Celei seus lábios com um beijo delicado e pacífico.
- Uma surpresa, minha prenda.
Ela estava atônita, mas logo depois deixou de raciocinar e
começou a olhar a Cidade Maravilhosa do alto.
Abracei-a novamente e deixei que meus dedos se perdessem na meiguice
dos seus cabelos. Sem desmanchar o gesto de carinho, comecei:
- Por que você fez isso, tali?
- Isso o quê? - perguntou ela, parecendo confusa.
- Beijou aquele outro.
- Ah... Ele... Ele me forçou...
- Não mente pra mim, tali.
- Mentindo, eu?
- tali, eu sei de tudo.
- João, você está me assustando.
Ficamos deitados no ar. Beijei-a novamente eprocurei seu pescoço.
Uma expressão de medo e surpresa refletiu-se nos olhos dela quando
sentiu a mordida e a dor lancinante. Não se debateu nem gritou.
deixou-se ficar. Provavelmente pensava que sobreviveria.
Seu sangue quente passava para mim. De repente, tornou-se mais
inerte. Seus cabelos tremeluziam como asas de um pássaro moribundo. Suas
mãos, flácidas, pendiam para os lados do corpo. Estava tudo acabado.
Olhei para baixo e avistei o Cristo redentor. Sem pensar muito,
desmanchei o abraço, fazendo com que seu cadáver deslizasse, passasse
entre os braços do Cristo e caísse pesadamente no chão de pedra.

Conversando com Deus

Conversando com Deus

Chegou, sentou e esperou. Ao ser interrogado sobre suas motivações,
retrucou que precisava de um laudo psiquiátrico. Quando o outro quis
saber do porquê, atalhou que estava prestes a casar e, portanto,
necessitava daquilo .
Problemas anteriores? Não, de modo algum. Sempre fora um sujeito
correto e razoável, em todos os sentidos. Mas agora pretendia casar e o
laudo se fazia indispensável. Ao ler a pergunta nos olhos do psiquiatra,
explicou:
- não quero que minha futura esposa se sinta insegura a meu
respeito. Quero lhe dar a certeza absoluta de que não tenho qualquer
anomalia .
- E por que ela suspeitaria da sua saúde mental a ponto de precisar
de um laudo? - quis saber o médico, parecendo, pela primeira vez, estar
ali.

- Um sujeito não se pode casar guardando da mulher um segredo tão
importante sobre si mesmo, tal qual é o da sua verdadeira natureza,
pois não?

O outro assentiu, com um olhar de nada na ponta das pestanas
espessas.
- Qual sua verdadeira natureza?
Tartamudeou um pouco antes de falar. Enquanto isso, o médico o
olhava de forma mais intensa. Tratava-se do indivíduo que se poderia
visualizar em qualquer situação. Um corpo comum e bem proporcionado, mil
faces poderiam caber para aqueles cabelos negros, e mil expressões
fisionômicas nos olhos castanhos e queixo voluntarioso. Contudo, de tão
comum, tornava-se singular. As mãos grandes e quadradas pousadas
sobre a mesa entre os dois, não despertavam qualquer imaginação,
especialmente ao sujeito sem imaginação que as fitava, enquanto
esperava uma resposta, que, de repente, parecia custar demais a
chegar.
- Ela não tem mais muito tempo, você sabe. Sei que pode senti-lo.
O médico surpreendeu-se. Em um átimo, passou a considerar a
possibilidade de ter diante de si um indivíduo louco, deveras.
Buscou um vislumbre de insanidade por detrás dos olhos
castanhos, apenas para descobrir que dentre todas as expressões que
podiam abrigar, a loucura estava fora de cogitação.
- Do que está falando? - Indagou, procurando, sem muito êxito,
dissimular a confusão que lhe ia no íntimo.
- Da sua mãe, naturalmente. - Atalhou o outro. - você sabe que a
vida escoa dela como a água derramada sobre a areia. Sabe que, em pouco
tempo, não restará mais tempo, apenas recordações e a dor do que deveria
ser feito e não foi, do que deveria ser dito e ficou preso para sempre.
O outro quis falar, mas voz não tinha. Como podia um estranho que
pleiteava um laudo saber da sua mãe e dos seus mais recônditos
sentimentos?
Entretanto, o outro continuou, aparentemente insensível ao que
provocava ao seu redor:
- Quanto ao divórcio em marcha, é tão certo que compreendo suas razões, quanto
que aconselharia uma observação mais detida sobre a real gênese do
contexto.
Ao que aparentou, apenas então o facultativo recuperou a voz para
perguntar:
- Quem você pensa que é? - Exigiu, a cólera e a surpresa
mesclando-se no seu íntimo.
- Eu não penso; eu sou. Sou Deus.
Ficou provado que das coisas mais instáveis de tudo aquilo era a
opinião do médico quanto ao homem que tinha diante de si.
- O atestado... Tem alguma ligação com isto?
- Toda. - Respondeu-lhe, enfático.
- Você se acha Deus...
- Creio não haver me explicado corretamente. Eu sou Deus.
- Deus... O "Lá de cima"?
- Eu crio e dou norte, razão e destino. Começo e termino, corto pelo
meio ou acrescento mais vida.
- Você quer me dizer que é Deus e quer de mim um laudo em que eu
assine sua saúde mental?
- Precisamente. - Confirmou o outro, com a mais natural das
expressões.
- Escute, isto só pode ser uma brincadeira.
- Jamais. Jamais brincaria com qualquer questão que se
relacionasse à mãe e à esposa de quem quer que fosse, menos ainda com as
de alguém a quem vim pedir um favor.
- Deus me pedindo um favor, casando-se e dando palpites sobre meu
relacionamento filial e conjugal... Decididamente, há louco para tudo.
- Pode alguém ser louco por perceber os sentimentos dos demais e
afirmar-se Deus? Acaso poderá enquadrar-me em algum quadro patológico
conhecido? Acaso não terão, ao longo dos tempos, chamado louco todo
aquele a quem não logravam compreender na perfeição? Existem doentes e
doenças, é verdade, mas para avaliar corretamente , há que se ter as
mais mínimas provas. Que provas tem você de minha inadequação à
sociedade ou da minha incapacidade de estar dentro dela como pessoa
normal?
Todas essas coisas foram ditas de forma sumamente digna, sem que a
autoridade passasse desapercebida. Agora era ele que exitava, mais pelo
que o outro lhe provocava, que por quaisquer questões médicas.
- Se Deus viesse à Terra, jamais se casaria.
- Com que então, sabe da natureza íntima do criador?
- Hora, ninguém o sabe. Mas é certo que não se casaria. Ele não
precisaria disso.
- Não? Hora, por favor! Não queira parecer que sabe o que é estar
aqui, sendo-se Deus! Uma compreensão de tudo e de todos, sem
possibilidades reais de ajudar, até que cada um decida, a seu tempo, que
está cansado de andar por onde esteve; desejar viver anônimo e oculto,
sem a companhia dos que se lhe afinizam com os propósitos mais
intrínsecos! E
o desejo de criar, a febre de fazer do nada alguma coisa, porque não
suporta ver o universo semeado do que poderia ser chamado de coisa
nenhuma! Não me diga que conhece das noites em vigília e dos dias
intermináveis!
Não venha me dizer que entende! Compreenderia, acaso, a dor da solidão
sentida por aqueles que desejam seguir um rumo distinto do da maioria
sendo, por isso, essencialmente mal compreendidos, quase em toda parte?
O relógio sobre a mesa marcava o tempo que passara. Do outro lado da
porta, outros pacientes aguardavam. O Dr. Olavo Freitas lembrava, sem
custo, aquelas sensações, ainda que jamais se supusesse Deus.
Permitiu-se cogitar da enormidade de seus padecimentos caso se cresse
divino. Certamente, se descobrisse a mínima afinidade, o mínimo gesto de
compreensão, não hesitaria em unir-se-lhe para sempre, se tal fosse um
desejo partilhado.

- Se é Deus, faz um milagre. - Sugeriu, sem pensar muito no que
dizia.
- Já o fiz. Você passou da burla à dúvida.
- Refiro-me a algo mais contundente, como dividir as águas, caminhar
sobre elas ou fazer parar a Terra.
- E então acreditará que sou um magnífico prestidigitador. Receio
que não. Também receio que seus demais pacientes o aguardem ali fora, e
que cada um deles tenha pendências ao saírem daqui. Não devo, com meu
pedido, por mais essencial que seja para mim, obstar a que continue seu
trabalho.
Levantou-se educadamente, estendendo a mão ao facultativo que,
surpreso, custava a compreender a mudança de disposição do outro.
- Visite-a, quando sair daqui, independendo de sua decisão. É livre
para agir como melhor convenha. Isto não será por nós, mas por sua
esposa.
Com estas frases aparentemente incompreensíveis, deu-lhe as costas e
saiu, fechando a porta delicadamente, ao passar.
Da gaveta da mesa, uma folha deslizou para fora. Habilmente foi
preenchida e assinada. O carimbo pousou prontamente, dando-lhe o
valor esperado. Da mão do homem, ela viu a porta sendo aberta. O outro
esperava, dizendo qualquer coisa à secretária. Pelas mãos do homem,
mergulhou em um envelope pardo, de onde nada mais pôde ver.
Nos tempos de escola, elas eram muito amigas. Pareciam mais irmãs
que nora e futura sogra, de forma que a união conjugal mais se
assemelhava a um trio fraterno a executar divina harmonia, em que cada qual sabia da sua
importância e lugar na mesma proporção em que enxergava e aceitava o dos
demais.
Assim fora por longos anos, felizes e prósperos, em que o amor se
fazia árvore frondosa e acolhedora. Um dia, porém, inexplicavelmente,
sogra e nora se separaram, e sem mais, a mãe do facultativo foi perdendo
o acordo de si. Da confusão passou a uma loucura inequívoca e, tão logo
ela foi conduzida a uma clínica, seu casamento perdeu a fluência. O trio
não soube tornar-se duo. Sentados no sofá, não tinham o que dizer.
Deitados na cama, a noite fazia-se vazia de um desejo que não chegava.
Acomodados no carro, as ruas e estradas passavam por eles, sem que
qualquer palavra lhes passasse pelos lábios. Ele podia lembrar-se de
tudo isso, enquanto o automóvel rodava pelo asfalto regular até o
hospital psiquiátrico.
Conduzido pelo enfermeiro de sempre, com os uniformes quase
imutáveis passando por eles, chegou até o quarto em que a mãe jazia.
Sedada e inerte, percebia-se, mais uma vez, de forma quase tangível, a
vida se lhe escapando apesar dos remédios endovenosos.
De súbito, seus olhos se abriram e uma compreensão inexcedível
espelhou-se neles, como há anos não se via.
Ela então falou-lhe, em tom claro e baixo, as lágrimas quentes e
redentoras rolando-lhe pela face macilenta. E do relato veio a gênese de
tudo, e da gênese, a capitulação. Do conjunto dessas coisas veio o perdão, e com ele,
a paz. As mãos dadas no silêncio do quarto asséptico deram-lhe coragem
de falar o que jamais dissera. E no diálogo pacífico e sincero, pôde-se
sentir de forma inolvidável a presença de Deus. Palavras contidas com
custo saltaram em turbilhão, procurando reter a vida que continuava a
esfumar-se como que fluísse de um conta-gotas imparável, até que a
última gota tombou e a mão ficou inerte sobre o leito.
Pelo diálogo esclarecedor e pela verdade revelada, o processo
de divórcio foi suspenso. De mãos dadas, no cortejo fúnebre, ele pôde
ver um casal a sua frente. Ela, uma jovem comum, como aquelas que eram
vistas em toda parte; ele, tão vulgar que fazia-se singular. Um
tremor seguiu o brilho de reconhecimento dos olhos do médico.
- Você os conhece, meu bem? - Perguntou-lhe a mulher, em um
sussurro.
Mas a resposta não foi necessária. Encaminhando-se aos dois, o homem
estendeu-lhe a mão.
- Veja, Amália, este é o médico que assinou o laudo que te
apresentei quando te disse que era escritor.